Todos sabemos que as pessoas não são propriedade de ninguém, desde que oficialmente a escravatura acabou. E digo oficialmente porque, na prática, continuam a existir muitas formas, mais ou menos escondidas, de escravatura de todas as cores e feitios. E, no entanto, todos queremos, desejamos, ser de alguém no sentido mais profundo do termo, na vertente afectiva da expressão. Para o nosso bem-estar é importante sentirmos que, de facto, somos de algum modo património emocional de outrem.
Mas, frequentemente, um professor encontra crianças e jovens que não pertencem realmente a ninguém, empurrados pelos solavancos do tempo, com a casa às costas, ou com a vida às costas, entre desamores, ausências, falta de tempo, falta de colo onde procurar abrigo, onde encontrar alento, onde poder rir ou chorar. Dá a sensação que nasceram por acaso ou impulso de um momento feliz e que, rapidamente, se tornaram um problema de arrumação ou de gestão de "stocks", ou mesmo num capítulo encerrado na vida daqueles a quem deviam pertencer para sempre.
"Só vejo o meu pai ao fim de semana, trabalha fora", "vivo uma semana com o meu pai e outra com a minha mãe", "não conheço os meus pais, vivo com a minha tia", "só vejo o meu pai uma vez por mês", "não sei o nome do meu pai", "a minha mãe morreu mais ou menos, não quer saber de mim" são algumas das frases que ouvimos com alguma frequência nas escolas, quando, no início de cada ano lectivo, se faz o preenchimento de uma folha da caderneta em que se pergunta tão simplesmente "Com quem vives?". Às vezes, são já 50 % de uma turma e o seu número pode ainda aumentar ao longo do ano lectivo ao sabor das paixões, de duração mais ou menos precária, do mercado de trabalho, ou de vontades efémeras.
Alguns (poucos), resilentes, fazem de tudo para mostrar que existem e que vale a pena gostar um pouco deles. São bons alunos, afectivos, empáticos. Têm ainda boas possibilidades de serem adultos com um projecto de vida consistente.
Mas muitos, muitos mesmo, perdem todas as hipóteses de futuro, num presente de revolta ou de indiferença, a que dolorosamente assistimos de forma impotente.
De quando em vez, consegue-se um pequeno milagre e sentimos que ajudamos a encontrar um rumo, que fizemos a diferença na vida de alguém, mostrando-lhe que nos importamos, que gostamos deles mesmo quando nos mostram as " quatro pedras" que têm na mão, que desejamos ensinar-lhes um modo saudável de resistir, de procurar a felicidade, aquela que se escreve com letra minúscula, fugaz, preciosa, possível.
Mas são poucos, muito poucos!
Dezembro de 2003
Isabel Malho
. Se...
. Somos um país de provinci...
. É urgente aprender a apre...
. A PT está a roubar-me des...